terça-feira, maio 13, 2014

"Nós assumimos o risco", ele disse, repetindo as palavras dela.
"Nós assumimos o risco", ela replicou.
Quatro palavras cujo significado era que não havia pior hora para ela ser abandonada por ele. Ela diz o que tiver que dizer, pensou Axler, mesmo que pareça um diálogo de novela de televisão, para que a coisa não termine, porque ela continua sofrendo, tantos meses depois, por conta da traição de Priscilla e dos ultimatos de Louise. Ela não faz isso para me enganar - é uma estratégia instintiva. Mas um dia há de chegar, pensou Axler, em que as circunstâncias vão deixá-la muito mais forte para terminar o relacionamento, enquanto eu vou estar numa posição mais fraca apenas por ter sido indeciso demais para terminar agora. E quando ela estiver forte e eu estiver fraco, o golpe será insuportável.
Ele achava que estava prevendo o futuro com clareza, e no entanto não conseguia fazer nada para mudar a situação. Estava feliz demais para mudar.

A Humilhação, Phillip Roth
pág.51

terça-feira, julho 30, 2013

I know so many people who think they can do it alone
They isolate their heads and stay in their safety zones

Now what can you tell them
And what can you say that won't make them defensive

I know there's an answer
I know now but I have to find it by myself

They come on like they're peaceful
But inside they're so uptight

They trip through their day
And waste all their thoughts at night

Now how can I come on
And tell them the way that they live could be better

I know there's an answer
I know now but I have to find it by myself

Now how can I come on
And tell them the way that they live could be better

I know there's an answer
I know now but I have to find it by myself

I Know There is An Answer
(The Beach Boys)





sexta-feira, maio 24, 2013

Melhores Inícios 6


"Em meus anos mais vulneráveis da juventude, meu pai me deu um conselho que jamais esqueci:
- Sempre que tiver vontade de criticar alguém - ele disse - , lembre-se de que ninguém teve as oportunidades que você teve.
Ele não falou mais nada, mas sempre fomos excepcionalmente comunicativos de uma forma contida, e entendi que ele queria dizer muito mais."

O grande Gatsby - F. Scott Fitzgerald
Tradução de Vanessa Barbara

quarta-feira, abril 17, 2013

Melhores Inícios 5


"Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: 'Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames'. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem."

O Estrangeiro - Albert Camus
Tradução de Valerie Rumjanek

terça-feira, abril 16, 2013

Melhores Inícios 4


"É uma verdade universalmente reconhecida, que um homem solteiro em posse de uma bela fortuna esteja em busca de uma esposa.

Ainda que sejam pouco conhecidos os sentimentos e as visões de tal homem quando ele entra pela primeira vez em uma nova vizinhança, tal verdade é tão bem estabelecida nas mentes das famílias vizinhas que ele é considerado como uma legítima propriedade de uma ou outra de suas filhas."

Orgulho e Preconceito - Jane Austen
Tradução da casa.

segunda-feira, abril 15, 2013

Melhores Inícios 3


"No princípio Deus criou o céu e a terra. A terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o Oceano e um vento impetuoso soprava sobre as águas. Deus disse: "Faça-se a luz"! E a luz se fez. Deus viu que a luz era boa. Deus separou a luz das trevas. E à luz Deus chamou "dia", às trevas chamou "noite". Fez-se tarde e veio a manhã: o primeiro dia."

Tradução Editora Vozes.

domingo, abril 14, 2013

Melhores Inícios 2


"Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a era da sabedoria, foi a era da ignorância, foi a época da crença, foi a época da incredulidade, foi a estação da Luz, foi a estação das Trevas, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero, tínhamos tudo à nossa frente, não tínhamos nada à nossa frente, íamos todos direto ao Paraíso, íamos todos direto ao outro lado."

Um Conto de Duas Cidades - Charles Dickens
Tradução da casa

sexta-feira, abril 12, 2013

Melhores Inícios


"Trate-me por Ishmael. Há alguns anos - não importa quantos ao certo -, tendo pouco ou nenhum dinheiro no bolso, e nada em especial que me interessasse em terra firme, pensei em navegar um pouco e visitar o mundo das águas. É o meu jeito de afastar a melancolia e regular a circulação. Sempre que começo a ficar rabugento; sempre que há um novembro úmido e chuvoso em minha alma; sempre que, sem querer, me vejo parado diante de agências funerárias, ou acompanhando todos os funerais que encontro; e, em especial, quando minha tristeza é tão profunda que se faz necessário um princípio moral muito forte que me impeça de sair à rua e rigorosamente arrancar os chapéus de todas as pessoas - então percebo que é hora de ir o mais rápido possível para o mar."

Moby Dick - Herman Melville
Tradução de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza

quarta-feira, março 13, 2013

Livros: "Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo" de David Foster Wallace

Resenha minha também publicada no site Scream&Yell.

Já foi muitíssimo mais difícil descobrir os autores que valem a pena. Até completar vinte anos, minhas fontes de referências literárias eram poucas: a estante de livros da minha mãe, algumas citações esparsas encontradas em quadrinhos e revistas de música (de rock, na verdade), e o “Caderno 2”, do Estadão. O colégio e a faculdade não ofereceram muito mais que Machado de Assis e alguns gurus da Administração de Empresas. Interesse e curiosidade sempre ajudaram, mas fora do campo da Música (o habitat natural da turba adolescente) não era nada fácil encontrar por si próprio os caminhos culturais que valiam a pena.

Se não fosse por minha mãe e por Paulo Francis, portanto, dificilmente me encontraria com George Orwell, Aldous Huxley ou Albert Camus (autores clássicos e requisitos básicos de qualquer formação, mas como eu iria saber?). E isso é o cânone. Mais difícil ainda era obter informação sobre novos e bons autores contemporâneos.

Toda essa introdução apenas para agradecer a existência da Internet. Afinal, foi através da Internet, e não da biblioteca da minha mãe (uma hora ela se esgota) e muito menos através dos cadernos culturais dos grandes jornais (uma hora eles deixam de fazer sentido) que pude chegar aos textos de David Foster Wallace.

Nos últimos vinte anos, a literatura viu surgir uma nova geração de autores extremamente talentosos. A virada de século foi prolífica tanto nos EUA (Jonathan Franzen, Michael Chabon) e Grã-Bretanha (Zadie Smith, David Mitchell, Jonathan Coe), como também na literatura de língua espanhola (sobretudo o chileno Roberto Bolaño). Apesar de vários desses autores terem sido publicados no Brasil, a repercussão dessa efervescência cultural perdeu aqui as vitrines da mídia tradicional, ficando restrita ao público iniciado ou interessado. Referências a toda essa turma de autores, somente espalhadas pela Internet, em sites, blogs e fóruns dedicados à literatura.

David Foster Wallace é talvez o mais talentoso, virtuoso e errático autor dessa geração. Já tinha publicado seu romance de estreia em 1987 (“The Broom of The System”) e um livro de contos (“Girl With a Curious Hair”, 1989) quando se consagrou definitivamente em 1996 ao lançar sua obra ícone, “Infinite Jest”. O romance é um catatau de 1.100 páginas que definiu claramente o estilo e o potencial do autor junto à crítica e seu público – uma prosa complexa, com descrições hiper-detalhistas, digressões extensas sobre incontáveis temas, repleta de insights fascinantes, sensibilidade e empatia fora do comum. Na esteira do sucesso, uma coletânea de contos, “Breves Entrevistas com Homens Hediondos”, foi publicada em 1999 também com boa repercussão (traduzida e publicada posteriormente no Brasil, em 2005, pela Companhia das Letras). Outra coletânea de contos, “Oblivion”, sairia nos EUA em 2004.

Wallace nasceu em Ithaca, no Estado de Nova York, em 1962. Escritor e professor de Literatura, estava portanto na casa dos 30 anos quando foi atingido pela repercussão de “Infinite Jest”. Sofrendo de depressão crônica desde a adolescência, Wallace viria a cometer suicídio dez anos depois, em 2008, aos 46 anos. Como costuma acontecer, a tragédia exponenciou a divulgação de seu nome na mídia. Da mesma forma, como também aconteceu com o chileno Roberto Bolaño (falecido em 2003), sua morte prematura aumentou ainda mais o culto ao redor de seu nome. Em 2011, com algum alarde da crítica, se deu a publicação póstuma de seu último e inacabado romance, “The Pale King”.

Além dos romances e contos, sua produção de não-ficção sempre foi também muito consistente. Por toda sua carreira, Wallace publicou artigos em revistas e jornais (Harper´s, New York Times) oferecendo o que ele próprio descrevia como um testemunho extra-jornalistico dos acontecimentos.

Seus ensaios são uma excelente porta de entrada para aqueles que querem conhecer sua obra. Deixam de lado a complexidade estrutural e o experimentalismo dos textos de ficção, mas mantém as mesmas qualidades que caracterizam o autor: sua inteligência e virtuosismo para quebrar a realidade nas mais ínfimas partículas, digressões filosóficas sobre os temas mais mundanos e um festival sensorial de detalhes descritivos. Ler seus textos é estar constantemente exposto à sensação de comungar com ele alguma reflexão ou impressão, mesmo sem nunca haver pensado ou sentido nada sequer parecido antes. Após páginas de descrições bem-humoradas sobre pessoas, locais e situações, Wallace parece sempre tirar da cartola alguma conclusão que é, ao mesmo tempo, inevitável e surpreendente, familiar e inovadora, empática, mas totalmente inédita.

Esses textos de não-ficção já foram reunidos em algumas compilações publicadas nos EUA (“A Supposedly Fun Thing I´ll Never Do Again”, 1997; “Consider The Lobster”, 2005) e alguns já haviam sido traduzidos para o português, mas publicados apenas parcialmente (trechos na Revista Piauí e também no blog Todoprosa, de Sérgio Rodrigues). De resto, aos brasileiros que se interessavam por mais coisas do autor, restava até agora garimpar a Internet à procura de seus artigos. Até agora, pelo menos.

“Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo” (Cia das Letras, 304 páginas) é finalmente a louvável iniciativa de compilar o melhor da produção de não-ficção deste grande autor e finalmente apresentá-la no Brasil a um público mais amplo. O livro foi lançado sobretudo pela iniciativa dos escritores Daniel Galera e Daniel Pellizzari, entusiastas do autor e tradutores dos textos para o português. Além de um interessante prefácio escrito por Galera, a coletânea traz cinco ensaios publicados em jornais e revistas americanos entre 1994 e 2006, além de um discurso de paraninfo proferido numa formatura de faculdade.

“Isto é Água”, o tal discurso de paraninfo, é o texto mais abstrato do livro. Conceitual e metafísico, seu recado aos alunos formandos começa com uma parábola, parte para exemplos prosaicos da vida cotidiana e termina por explicitar um tipo de “credo” do autor, um conjunto de crenças e valores que ele imagina necessários para suportar os fardos da existência. Simplicidade e profundidade, mais uma das antíteses comuns em Wallace.

Outros três ensaios são exemplos clássicos de New Journalism, o tal jornalismo literário narrado em primeira pessoa, mas com a inconfundível voz “não-jornalística” do autor. Tratam-se, na prática, de artigos escritos sobre eventos turísticos onde, como descreve o autor, a pauta que lhe foi dada era algo tão objetivo como “vá até lá, gire 360 graus e nos conte o que você viu”. No final, o resultado são testemunhos incríveis, divertidos e únicos, revelando tanto a essência dos eventos em si como também transformando o próprio autor num personagem cativante. “Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo”, o texto que dá nome ao livro, é o relato sobre uma visita à Feira Rural de Illinois, um curioso embate entre a visão de um urbanóide cidadão do Leste civilizado versus o agrícola Meio-Oeste Americano. “Uma Coisa Supostamente Divertida que Eu Nunca Mais Vou Fazer” conta a semana desfrutada por Wallace dentro de um super-navio de cruzeiro no Caribe. O título do ensaio resume seu espírito. Finalmente “Pense na Lagosta” é um misto de reportagem sobre o Festival da Lagosta do Maine e ensaio filosófico-existencial sobre o fato de cozinharmos lagostas vivas apenas para satisfazer nosso paladar. Publicado numa revista de gastronomia, talvez o artigo tenha surpreendido os leitores-gourmets.

Temos ainda “Alguns Comentários sobre a Graça de Kafka dos Quais Provavelmente Não se Omitiu o Bastante”, palestra com uma perspectiva inusitada sobre o autor tcheco e, finalmente, “Federer como Experiência Religiosa”, texto fantástico sobre a experiência de testemunhar um super-humano no torneio de Wimbledon 2006 e um dos melhores artigos da coletânea (pelo menos para quem gosta de jogar ou assistir tênis).

Replico então aqui, como retribuição até, o presente magnífico que obtive da Internet: recomendo muitíssimo conhecer a prosa de David Foster Wallace. Pelo menos agora, a publicação de “Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo”, deixa mais física e evidente a presença dele entre nós. Para breve, a Companhia das Letras também promete o lançamento no Brasil de “Infinite Jest”, atualmente sendo traduzido por Caetano Galindo. Espero ansiosamente e já sei que vai valer a pena.

sexta-feira, janeiro 11, 2013

Livros: "Barba Ensopada de Sangue", de Daniel Galera

Resenha minha também publicada no site Scream&Yell.




Tolstói teria afirmado certa vez que "toda grande literatura é uma destas duas histórias: um homem que parte numa viagem, ou um forasteiro que chega a uma cidade."

Daniel Galera é um escritor ambicioso e portanto sempre mira na grande literatura. Não se fez de rogado e seguiu não uma, mas as duas sugestões do velho mestre russo. "Barba Ensopada de Sangue" é um pouco daquelas duas histórias.

O homem que parte numa viagem é o "nadador": um professor de Educação Física, de quem não sabemos o nome, que após o suicídio do pai abandona sua cidade, seus amigos e família e sai numa jornada em busca de coisas incertas - isolamento, reflexão, luto, autoconhecimento - e também de um objetivo mais claro: desvendar uma lenda de família. Seu avô, havia lhe contado seu pai pouco antes de morrer, fora morto em circunstâncias estranhas, quarenta anos antes, numa vila de pescadores no litoral de Santa Catarina.

Garopaba é a cidade que recebe o forasteiro. A antiga vila de pescadores, agora transformada num movimentado balneário, destino de surfistas, hippies e famílias em férias de verão, é praticamente um personagem do romance. Descrita com objetividade e detalhismo incomum na literatura brasileira recente (que parece sempre preferir criar ou generalizar lugares e referências), o local revela uma personalidade inusitada, dividida entre a euforia da alta-temporada e a grande sombra imposta pelos longos meses de frio e inatividade.

O forasteiro chega após o final do verão e sua recepção se mostra pouco suave. O avô do rapaz parece não haver deixado boas lembranças por ali e falar sobre sua morte, mesmo após tanto tempo, logo se revela um assunto proibido entre os nativos.

Para temperar a história (uma muleta narrativa, diriam os maldosos) o "nadador" possui uma doença neurológica que o impede de memorizar rostos. Sua cegueira facial torna difícil reconhecer qualquer pessoa logo “de cara" (com o perdão do trocadilho). Sua deficiência o obrigou a desenvolver habilidades alternativas desde a infância: dos familiares, carrega fotos etiquetadas para se lembrar de seus rostos; dos novos conhecidos, sempre escaneia todo e qualquer detalhe que possa servir para identificar o sujeito futuramente.

Uma cidade inóspita, um forasteiro com limitações naturais de adaptação, histórias sinistras do passado sendo desenterradas. Está construída a tensão do enredo.

Galera é um narrador habilidoso e, a partir daí, consegue criar um clima de apreensão controlada e crescente. O ritmo é lento, num passo a passo sem pressa (como diria Gonçalo M. Tavares na contracapa do livro) rumo às possibilidades de desfecho. A prosa coloquial e o detalhismo descritivo caracterizam o próprio protagonista e, ao mesmo tempo, constroem a sensação do ambiente. O discurso indireto livre, que funde a terceira pessoa ao foco e à mente do protagonista, também contribui para isso. O narrador-protagonista navega pela cidade e pela natureza ao redor, atento a fatos e coisas que nem sempre serão essenciais ao desenvolvimento do enredo. Os personagens secundários tem importâncias diversas, suas tramas por vezes não se concluem, entram e saem da trajetória do "nadador" com impactos relativos. Mas a vida é assim, cheia de déficits de atenção e contornos de caminhos, e no final talvez seja essa aleatoriedade que dê o colorido e a verdade de uma história.

Essas digressões narrativas remetem logo a uma das influências explícitas do autor: Galera é tradutor e entusiasta de David Foster Wallace, um prodígio na arte de esmiuçar a realidade às partículas mais insólitas. Isso fica ainda mais evidente quando Galera se utiliza das notas de rodapé, outro artifício característico de Wallace, para dar voz a outros personagens do livro. Um recurso interessante e que funcionou muito bem. No mais, é bastante positivo ver um autor brasileiro absorvendo influências tão contemporâneas, escapando da economia narrativa e fugindo da dualidade prosa seca/prosa poética que se vê tradicionalmente na nossa ficção.

Se foi feliz no uso das digressões narrativas e descritivas, o autor não encontrou a fórmula certa para inserir suas reflexões e opiniões na voz dos personagens. Dissertar sobre certos assuntos de forma mais elaborada era certamente um desafio sem ter em mãos um narrador onisciente e desapegado. As divagações de Galera são sempre interessantes, mas colocadas nas bocas de alguns personagens acabaram soando despropositadas.

Temáticas comuns ao autor também se confirmam em "Barba Ensopada de Sangue". Galera parece sempre interessado no embate natureza versus civilização, na busca pela verdade mais primitiva e essencial das motivações humanas, no quanto nosso livre-arbítrio é condicionado pelo ambiente e por predestinações auto-impostas. Ao mesmo tempo estão ali também provocações ao racionalismo tacanho do bem pensar contemporâneo, através de referências a sonhos premonitórios, consciências coletivas, lendas que se concretizam. O mistério nem sempre se explica em Garopaba.

No final, a saga do "nadador" em busca do avô ganha traços míticos. Quem persegue a lenda acaba se somando a ela. Ecos de Faulkner e Conrad não são coisas descabidas aqui. Rumo ao coração das trevas, o protagonista retorna aos seus próprios medos e mistérios. Ir à forra com o passado do avô se transforma em enfrentar seu próprio rancor e escolher seu próprio destino. As páginas finais mesclam momentos de contemplação e mergulho na natureza com cenas de ação e violência purificadora. Enfim faz-se juz ao título e ao sensacional prefácio. E mais que isso não se pode dizer para não estragar surpresas.

Em entrevista ao jornal “O Globo”*, Daniel Galera afirma que, do ponto de vista da linguagem, "Barba Ensopada de Sangue" é seu livro mais pessoal, onde pôde utilizar sua voz natural. Em contraponto, cita a experiência radical de "Cordilheira", seu último romance, quando criou uma protagonista feminina.

De certa forma, Galera jogou o jogo em casa. Assim como seu protagonista, o autor também é de Porto Alegre, gosta de nadar, ouviu a lenda do gaúcho assassinado da boca do próprio pai e também se meteu a ser forasteiro em Garopaba numa temporada de mais de um ano. No entanto, ou até por isso mesmo, Galera mirou alto e atingiu um resultado muito feliz com seu novo romance. "Barba Ensopada de Sangue" é daqueles grandes livros que se tornam mais interessantes na medida em que mais se reflete sobre eles.


quinta-feira, novembro 29, 2012

sexta-feira, novembro 23, 2012

Black Friday: o Inferno do Economista Comportamental

Tradução livre (e rápida) do artigo de Kevin Roose publicado na New York Magazine.















Existem muitas, muitas razões para você não entrar nessa história de Black Friday. Você pode preferir dormir, ou mesmo passar um pouco mais de tempo com a família, ao invés de pegar uma fila de shopping às 2 horas da manhã. Talvez você se recuse por motivos humanitários, protestando contra os horários cada vez mais abusivos dos grandes varejistas, que obrigam seus funcionários a trabalhar no meio do feriado prolongado, batendo cartão em plena madrugada (muitos deles sendo chamados ao trabalho no próprio dia de Thanksgiving).

No entanto, entre todas as razões que existem para que uma pessoa inteligente não participe da Black Friday, eis a principal: ela foi cuidadosamente planejada para que você se comporte como um idiota.

O principal problema da Black Friday, na perspectiva de um economista comportamental, é o fato de que todos os incentivos que o consumidor poderia ter para aproveitá-la – a promessa de ter descontos enormes em produtos geralmente caros, como TVs ou computadores, a oportunidade de aproveitar esse dia e fazer toda a sua compra de Natal de uma só vez – são incentivos que se revelam ilusórios ou, simplesmente, são frustrados pelo tipo de comportamento que encontramos do outro lado do balcão. O país todo fica envolvido num experimento que testa a irracionalidade do consumidor, tudo muito bem maquiado para parecer um programa divertido para o meio do feriado.

O pesquisador Dan Ariely descreve em seu livro “Predictably Irrational” (Previsivelmente Irracional): “Repetimos sempre os mesmos tipos de erros, indefinidamente, porque nosso cérebro parece estar programado para isso”.

É claro que isso também se aplica aos outros 364 dias do ano. Mas na Black Friday, nossa capacidade de decidir racionalmente vai ao seu nível mais baixo, justamente porque o varejo se esforça ao máximo para maximizar as nossas más decisões. Aqui estão algumas das armadilhas em que você provavelmente cairá nesta sexta-feira:

A “Superoferta” - É geralmente um item mais caro, mais cobiçado (tipicamente uma TV ou algum outro eletrônico) que os lojistas anunciam num preço extremamente baixo. (A BestBuy anunciou neste ano uma TV Tela Plana da Toshiba por US$ 179.99, por exemplo). Os lojistas chamas esses ítens de “Grandes Prejuízos”, mas, na verdade, é raro que sejam vendidos realmente abaixo do preço de custo. Na maioria das vezes são itens com uma margem de lucro bem pequena, reduzida ao máximo para que você seja atraído para dentro da loja. Uma vez lá dentro, você provavelmente você vai levar outras coisas pelo seu preço normal, com altas margens de lucro embutidas.

Este é o principal segredo do varejo na Black Friday: você simplesmente não vai comprar só a TV. Vai levar também os cabos HDMI revestidos, o suporte para pendurar a TV na parede (e sua taxa de instalação, é claro), o cabo de força alternativo, e o jogo de Xbox que chamou sua atenção quando você passava pelo corredor. Desse modo, no momento em que chega ao caixa, todo o desconto que você tinha aproveitado na TV já desapareceu pelo caminho.

A “Escassez Sugerida” - A estratégia aqui é conquistar o interesse pelo produto martelando a mensagem de “quantidade limitada” ou “somente 2 unidades por cliente” o que leva a pensar que estamos diante de uma oportunidade realmente imperdível. É o típico marketing da enganação, e em nenhuma época do ano é usado mais descaradamente que na queima da Black Friday. (É claro que há também escassez de verdade na Black Friday - quando o lojista coloca, por exemplo, apenas 50 ou 100 unidades para vender como “Superoferta” – o que faz você correr o risco de ser o 51º da fila, perder seu tempo e ainda ficar de mãos abanando. O que seria pior afinal?)

O “Auto-Engano Motivador” - Muitos consumidores ficam felizes ao somar todos os descontos que ganharam na Black Friday, mas se esquecem de colocar na conta os fatores “indiretos” do seu dia de compras – combustível, deslocamento, estacionamento, taxas de garantia, trocas. (Sem falar em perder seu tempo de feriado numa fila de shopping). Se tudo for colocado no papel, existe grande chance de chegarmos a conclusão que não foi um negócio tão bom assim.

A “Escalada Irracional” - Este é um comportamento muito interessante, a velha ilusão do“já cheguei até aqui, vamos compensar esse prejuízo”. As pessoas costumam ter dificuldade para desistir de situações onde estão se dando mal financeiramente. Isso acontece muito na Black Friday. Você já fez seu investimento inicial, o péssimo investimento de acordar às 2 da manhã, dirigir até o shopping, brigar por uma vaga no estacionamento, esperar na fila as lojas abrirem. Para compensar isso tudo, você se sente disposto a comprar ainda mais do que previa antes. (Já estou aqui mesmo, por que não aproveitar para gastar mais 100 dólares?)

Um dos meus estudos favoritos na área da economia do comportamento se chama “Previsores Neurais do Processo de Compras” (link disponível no artigo original) onde, monitorando as ondas cerebrais de alguns “consumidores-cobaias”, foi possível registrar como o processo de compra é profundamente irracional. Os pesquisadores descobriram que assim que o comprador descobre que um determinado preço está abaixo do que ele esperava, seu córtex central pré-frontal (a região do cérebro responsável pela tomada de decisões) se ilumina, enquanto que preços acima do esperado fazem disparar a ínsula (região que processa a dor). A atividade cerebral demonstrou forte correlação com o fato dos consumidores acabarem comprando determinado produto ou não.

A “Anestesia de Curto-Prazo” - Os economistas geralmente acham que as escolhas do consumidor, ou do “mercado”, são baseadas em frias e racionais análises de custo-benefício – um monte de pessoas dizendo a si mesmas “Será que ter uma TV grande por US$ 179,99 agora vai me trazer mais prazer que deixar US$ 179,99 no banco para fazer outras coisas no futuro?” – mas esse estudo de 2007 demonstra que, definitivamente, os consumidores não se comportam dessa maneira. A escolha, na verdade, é entre duas opções bem concretas e de curto-prazo : “prazer imediato” ou “dor imediata”.

Isso explica o porquê de, durante a Black Friday, os varejistas tirarem da cartola todos os seus truques para minimizar a “dor imediata” da compra: parcelamento à longo prazo no cartão de crédito, parcelas de pequeno valor, cartões de fidelidade com “bônus” para cada compra, cartões de crédito próprios das lojas acumulando pontos de incentivo, etc. O problema destas fórmulas de anestesia do curto-prazo, obviamente, são suas consequências de longo-prazo – taxas de juros astronômicas e outras diversas taxas escondidas.

As “Justificativas do Pós-Compra” - Quando compramos um produto muito caro, costumamos menosprezar seus defeitos e falhas simplesmente para justificar nossa decisão anterior. Na Black Friday, o investimento é mais do que financeiro – nos envolvemos emocionalmente, um dia após o Thanksgiving, nesse ritual estranho de se colocar numa fila gigantesca, acompanhados de amigos e parentes, aguentando o frio e o sofrimento, em busca de aparelhos eletrônicos baratinhos. Após a compra, esse excesso de investimento leva a um excesso de racionalização das justificativas que, junto com o pesadelo que é pensar num processo de troca/devolução nas grandes lojas, faz com que acumulemos um monte de coisas mesmo não estando minimamente satisfeitos com elas.

É isso mesmo. Na visão dos economistas do comportamento, fazer compras nos outros 364 dias do ano é equivalente a enfrentar um tiroteio armado com uma faca. Mas fazer compras na Black Friday é como entrar no mesmo tiroteio empunhando uma faca de massinha-de-modelar. Entre os truques do varejo e nossas próprias falhas cognitivas, você não tem quase nenhuma chance de poupar algum dinheiro de verdade ou sequer tomar decisões racionais. (E, além de tudo, você pode ser roubado no caminho).

Na verdade, é bem possível que apenas ficar aqui dizendo para você não aderir à Black Friday faça com que você ative seu “viés da contradição” (a tendência de se fazer sempre o oposto do que alguém te recomenda) e saia correndo atrás desse carnaval de ofertas e descontos. Se for esse o caso, boa sorte. Você vai precisar.


quarta-feira, novembro 14, 2012

Os dez mandamentos de Plínio Marcos


Por onde andará Plínio Marcos?

Plínio Marcos, calaboca, já morreu. Caio Fernando Abreu também mas, ao contrário dele, nunca vejo Plínio no Facebook.

Nos meus idos vinte anos, tempo em que a gente costuma ser mais gauche na vida, eu tinha uma certa fascinação pelo Maio de 68. Também pendurei no mural do quarto um recorte de jornal com os "Dez Mandamentos de Plínio Marcos".

Lembrei deles ontem, com o carinho da nostalgia. E, apesar de toda enunciação de um "credo", em si, ser um pouco constrangedora, eles ainda fazem pensar. Daqui a pouco, quem sabe, vão parar no "Face".

  1. Onde houver autoridade, não pode haver criatividade.
  2. A arte é uma magia; a gente aprende, mas ninguém ensina.
  3. Qualquer método logo vira um sistema burocrático.
  4. As grandes sabedorias - a poesia, a magia e a arte - não podem habitar corações medrosos.
  5. Tudo se consegue com esforço; não se chega a lugar nenhum sem caminhar.
  6. A arte, de um modo geral, só faz sentido como tribuna livre, onde se possa discutir até as últimas consequências os problemas do homem.
  7. A cultura nas mãos dos poderosos constrange mais que as armas, por isso a arte e o ensino oficiais são sempre sufocantes.
  8. Para poder ver, é preciso esquecer a religião, a educação e a ideologia.
  9. Cuidado com o papo dos velhos; geralmente o que dizem é para justificar a vida miserável que viveram.
  10. Não se prenda a nada. Esses ensinamentos eu escutei pelas trilhas dos saltimbancos em mais de quarenta anos de andanças. Têm me valido.


terça-feira, novembro 13, 2012

Minha Estratégia Secreta® para evitar encrencas com e-mails

Tradução do texto de James Fallows publicado no site da revista The Atlantic


Criei um plano à-prova-de-idiotas capaz de garantir que qualquer pessoa possa evitar sofrer o tipo de desastre que se abateu sobre o General David Petraeus, sua biógrafa Paula Broadwell e sua troca de e-mails.

Trata-se de um plano tão perfeito e eficiente que não exige de você nenhum ajuste de comportamento, de nível de fidelidade conjugal, ou qualquer coisa do tipo. Meu plano reconhece que, desde as mais remotas eras, as pessoas se comportam mais ou menos da mesma maneira, e vão sempre se comportar assim.

Para usufruir da minha Estratégia Secreta® basta que você me envie um cheque no valor de US$ 99.95 , aos cuidados do escritório da revista The Atlantic. Ou melhor, vá lá, na internet tudo é de graça mesmo, siga lendo este texto e aproveite meus conselhos.

Meu plano é o seguinte:

Nunca coloque numa mensagem de e-mail, seja para quem for enviá-la, nada que possa lhe causar problemas se a mensagem cair em mãos erradas.

Este é o plano. Está tudo aí. Simplesmente respeite esta regra. Sempre.

Eu nem me refiro às dificuldades menores do dia-a-dia que podem surgir quando algumas de nossas informações pessoais são reveladas: números de Cartão de Crédito, informações financeiras, problemas que estamos tendo para controlar o peso ou alguma outra questão de saúde, confissões constrangedoras que fazemos aos amigos.

Eu me refiro às coisas que podem realmente causar problemas. Críticas pesadas às pessoas com quem você trabalha – ou, pior, à pessoa para quem você trabalha. Fofocas e intrigas sobre pessoas que pensam que somos amigos. Qualquer indício sobre qualquer comportamento que possa criar problema se exposto – por exemplo, a hipótese de você estar tendo um caso extra-conjugal e preferir que sua mulher e seus colegas de trabalho não sejam informados sobre o assunto.

Correspondência desviada, ou que simplesmente caiu em mãos erradas, sempre foi uma fonte de tristeza e sofrimento desde os tempos pré-computador. Por exemplo: a tragédia narrada no grande romance de Ian McEwan, “Reparação”, ocorre em razão de um acontecimento desses.

Mesmo assim, o e-mail tornou tudo ainda diferente:
  • E-mails podem facilmente ser re-enviados, podendo chegar a lugares não desejados inicialmente.
  • E-mails podem facilmente ser enviados para destinatários errados, seja através do clássico “Reply to All” seja pelo sistema de Auto-Complete que sugere os endereços de e-mail
  • E-mails podem facilmente ser arquivados.
  • E, talvez o mais importante, e-mails podem facilmente ser encontrados. Você gastaria dias pesquisando um armário cheio de cartas velhas, mas consegue achar coisas saborosas numa pasta de e-mails em apenas alguns segundos.

Cuidadosamente, costumo sempre checar três vezes os campos “To:” e “Cc:” antes de enviar qualquer mensagem. Também ativei um dispositivo no Gmail que se chama “ooops”, que te dá alguns segundos para desenviar uma mensagem que você tenha enviado por engano.

Além disso, antes de colocar qualquer coisa em um e-mail, pergunto para mim mesmo: o que aconteceria se a pessoa que eu menos desejasse que lesse esta mensagem conseguisse lê-la. No caso de qualquer crítica, opinião ou julgamento não passar neste teste, a melhor saída é optar pelo velho bate-papo, pessoalmente ou mesmo por telefone. Quem um dia imaginaria que o telefone, que pode obviamente ser grampeado ou interceptado, seria um dia visto como uma forma de comunicação “mais segura” ou “mais privativa” que uma troca de e-mails. Mas, de verdade, é assim que as coisas são.

Nunca coloque nada num e-mail que possa lhe causar problemas sérios se ele for compartilhado com outras pessoas. É isso. Vou ficar esperando pelos meus US$ 99,95.

sábado, novembro 10, 2012

A Inteligência Política de Obama

Tradução livre do texto de Adam Gopnik, publicado no site da revista The New Yorker


A noite da última terça-feira foi muito bonita para aqueles que admiram o Presidente Obama por seu temperamento, sua inteligência, sua calma, sua decência e também por sua recusa, diante da óbvia e intensa pressão de suas filhas, em comprar um segundo cachorro. (E vamos admitir isso de uma vez por todas: é uma delícia ter um cachorro - mas um só é o suficiente). A noite de terça serviu também para sacramentar o Fenômeno Obama. Por uma concreta, ainda que pequena, margem - ou seja, como uma necessidade do destino, mais do que uma mera contingência política.

Ainda se trata de uma das mais fantásticas trajetórias na história da América: um rapaz negro de Chicago, com um estranho nome africano e sem nenhum grande feito no currículo além de um brilhante discurso em 2004 e um bonito e introspectivo livro de memórias autobiográficas, se torna o mais importante personagem do ainda todo-poderoso Império Americano. Nada de tão improvável aconteceu numa democracia, ou semi-democracia, desde os tempos de Disraeli.

E, uma vez mais, nos espantamos diante da capacidade dos adversários de Obama de odiá-lo com tanta paixão. Um homem que até mesmo suas filhas adolescentes devem ter dificuldade de contrariar, um homem que nunca demonstra raiva, que sempre busca a conciliação, mesmo sob risco de prejuízo próprio, e que dificilmente disse algo rude, mal-intencionado ou destemperado durante toda sua vida pública.

No entanto, basta assisti-lo subir até o palco e tomar seu lugar no púlpito para entender algumas das razões de tanto ódio. Obama é, acima de tudo, calmo, tranqüilo – é auto-suficiente, e essa auto-suficiência, essa tranqüilidade explícita, que é vista, até mesmo por seus admiradores, como um certo distanciamento, uma ironia perante sua própria eloquência, deve transmitir aos seus detratores um desapego e arrogância insuportáveis. John Kennedy, que tinha a mesma característica do distanciamento, foi muitas vezes acusado, com bastante justiça, de ser ensimesmado e indiferente aos outros. Não se sentia obrigado a agradar ninguém. Mas, ainda assim, odiá-lo? De que forma exatamente? Por que, precisamente? (Republicanos, que já tiveram a oportunidade de assistir à impotência e indignidade dos Democratas odiando Reagan, o seu próprio “sujeito auto-suficiente”, já deveriam saber lidar com isso). Mas é inevitável. Todo mundo admira o cara que ganha tudo e mal derrama uma gota de suor – menos aqueles que estão disputando a corrida ao seu lado, que preferiam, pelo menos, que aquele cara parecesse ter se esforçado um pouco. Um homem que é tão auto-suficiente, disse o filósofo, nem sempre reconhece as carências dos outros. (Alguém duvida que Bill Clinton adoraria ser mencionado no discurso da vitória do Presidente? Ele não obteve essa honra mas, sendo um homem com muito mais sensibilidade, certamente ele teria citado Obama, se os papéis da noite estivessem trocados).

O fato realmente estranho no pronunciamento da vitória foi que Obama retornou, com paixão e sinceridade evidentes, aos temas daquele primeiro e belo discurso das prévias Democratas em 2004: a unidade nacional; somos menos divididos do que nossa política parece sugerir; não existem “Estados Republicanos” ou “Estados Democratas”. “Não, não!” parecem querer intervir alguns de seus admiradores: “Preste atenção ao que aconteceu durante os últimos quatro anos, Sr. Presidente! Somos definitivamente tão divididos quanto sugerem nossas disputas políticas. É, na verdade, por essa razão que nossa política é assim.”

Persistir acreditando em algo já tantas vezes refutado pela realidade é parte do dom de Obama. Apesar de seu mandato ter sido bem sucedido – a reforma do Sistema de Saúde, políticas econômicas racionais, Juízes da Suprema Corte lúcidos, fim da tortura, e todo o resto – o seu projeto político mais específico foi, de diversas formas, um fracasso. No começo de seu primeiro mandato, Obama claramente pensava que suas tão evidentes qualidades, sua boa vontade, sua  inteligência e vontade de conciliação – qualidades que ele também julgava como evidentes, já que a modéstia, assim como a carência, também não faz parte das armas do “sujeito auto-suficiente” – tudo isso faria com que o pessoal da direita, pelo menos os mais racionais, viessem para o seu lado, assim como afastaria os mais radicais de ambos os partidos. Mas isso não aconteceu. Nem perto disso. Assim, é fácil perceber por que alguns de seus apoiadores (Chirs Matthews, por exemplo) ficaram, apesar de toda a euforia da 2ª vitória, um tanto exasperados – não vamos repetir isso tudo de novo, vamos?

A verdade, no entanto, é que existem razões claras que explicam por que Obama é um fenômeno e uma delas é possuir uma inteligência política tão afiada que o permite perceber rapidamente quando uma ilusão lhe é útil. Inteligência política é um dom tão distinto e intuitivo quanto qualquer outro tipo de inteligência – a inteligência motora de um atleta, ou a inteligência analítica de um intelectual – e um grande componente da inteligência política reside na fidelidade que o líder demonstra às suas próprias ficções. O novo filme de Spielberg, “Lincoln”, nos lembra (ou nos fará lembrar, quando for lançado mais amplamente), que toda a conduta de Lincoln no seu mandato durante a guerra civil se baseava na ficção de que a secessão, a divisão “Norte-Sul” dos EUA, nunca havia de fato ocorrido – que o Sul não era uma nação rebelde, mas apenas um bando de foras-da-lei se organizando em gangues e fazendo arruaças. O que era fácil constatar que acabava de ter acontecido – um grupo de estados se tornando uma nação em separado – simplesmente não tinha acontecido. Essa ilusão de continuidade, de união indissolúvel mesmo diante de sua evidente dissolução, era essencial à causa de Lincoln e às suas próprias crenças.

À lista de – como poderíamos chamá-los? – nobres mentirosos (um tanto duro, mas creio que transmite algo do conceito) deveríamos adicionar muitos outros grandes políticos. Franklin D. Roosevelt, com sua afirmação de que o medo era tudo que tínhamos a temer, quando havia muita coisa bem real a ser temida; Reagan, da mesma forma, repetindo sempre seus mitos e mantras. Por hora, Obama precisa conhecer as vantagens de se brigar e os limites de se invocar a união. Mas ele sabe, da mesma forma, que um “sujeito auto-suficiente” não pode deixar de cultivar cuidadosamente o seu discurso mais querido, sob o risco de torná-lo vazio e irrelevante. Se toda esta habilidade pode fazê-lo ser visto às vezes como ingênuo, ou até mesmo como manipulador, bem, afinal, é ele quem é o fenômeno e não você. E foi ele quem bateu o pé e não cedeu ao segundo cachorro.